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Estudo revela principal alvo do COVID-19 no cérebro e descreve efeitos do vírus no sistema nervoso

Foto do escritor: DR JOSÉ AUGUSTO NASSER PHDDR JOSÉ AUGUSTO NASSER PHD



SARS_CoV_2, o vírus responsável pelo COVID-19 infecta e replica em astrócitos, reduzindo a viabilidade neural.

Um estudo brasileiro publicado na revista PNAS descreve alguns dos efeitos que a infecção pelo SARS-CoV-2 pode ter no sistema nervoso central.

Uma versão preliminar (ainda não revisada por pares) publicada em 2020 foi uma das primeiras a mostrar que o vírus causador do COVID-19 pode infectar células cerebrais, especialmente astrócitos. Também abriu novos caminhos ao descrever alterações na estrutura do córtex, a região cerebral mais rica em neurônios, mesmo em casos de COVID-19 leve.

O córtex cerebral é a camada externa de matéria cinzenta sobre os hemisférios. É o maior local de integração neural no sistema nervoso central e desempenha um papel fundamental em funções complexas como memória, atenção, consciência e linguagem.

A investigação foi conduzida por diversos grupos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), Instituto D'Or (IDOR) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também contribuíram para o estudo.

"Dois estudos anteriores detectaram a presença do novo coronavírus no cérebro, mas ninguém sabia ao certo se estava na corrente sanguínea, células endoteliais [forrando os vasos sanguíneos] ou células nervosas. Mostramos pela primeira vez que ele realmente infecta e se replica em astrócitos, e que isso pode reduzir a viabilidade dos neurônios", disse à Agência FAPESP Daniel Martins-de-Souza, um dos líderes do estudo. Martins-de-Souza é professor do Instituto de Biologia da UNICAMP e pesquisador afiliado ao IDOR.

Os astrócitos são as células mais abundantes do sistema nervoso central. Suas funções incluem fornecer suporte bioquímico e nutrientes para neurônios; regulação de níveis de neurotransmissores e outras substâncias que possam interferir no funcionamento neuronal, como o potássio; manter a barreira hemencefálica que protege o cérebro de patógenos e toxinas; e ajudando a manter a homeostase cerebral.

A infecção por astrócitos foi confirmada por experimentos usando tecido cerebral de 26 pacientes que morreram de COVID-19. As amostras de tecido foram coletadas durante autópsias realizadas por meio de procedimentos minimamente invasivos por Alexandre Fabro, patologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) da Universidade de São Paulo. A análise foi coordenada por Thiago Cunha, também professor da FMRP-USP e membro do Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID).

Os pesquisadores utilizaram uma técnica conhecida como imunohistoquímica, um processo de coloração em que os anticorpos atuam como marcadores de antígenos virais ou outros componentes do tecido analisado.

"Por exemplo, podemos inserir um anticorpo na amostra para tornar os astrócitos vermelhos na ligação a eles, outro para marcar a proteína de pico SARS-CoV-2, tornando-a verde, e uma terceira para destacar o RNA de duplaridade do vírus, que só aparece durante a replicação, transformando-o em magenta", explicou Martins-de-Souza.

"Quando as imagens produzidas durante o experimento foram sobrepostas, todas as três cores apareceram simultaneamente apenas em astrócitos."

Segundo Cunha, a presença do vírus foi confirmada em cinco das 26 amostras analisadas. Alterações sugerindo possíveis danos ao sistema nervoso central também foram encontradas nestas cinco amostras.

"Observamos sinais de necrose e inflamação, como edema [inchaço causado por acúmulo de fluido], lesões neuronais e infiltrações de células inflamatórias", disse.

A capacidade do SARS-CoV-2 de infectar o tecido cerebral e sua preferência por astrócitos foi confirmada por Adriano Sebolella e seu grupo na FMRP-USP utilizando o método de culturas de fatias derivadas do cérebro, um modelo experimental no qual o tecido cerebral humano obtido durante a cirurgia para tratar doenças neurológicas como a epilepsia refratária de drogas, por exemplo, é cultivado in vitro e infectado com o vírus.

Sintomas persistentes

Em outra parte da pesquisa, realizada na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da UNICAMP, 81 voluntários que haviam se recuperado de COVID-19 leve foram submetidos a exames de ressonância magnética (RM) de seus cérebros.

Esses exames foram realizados 60 dias após o teste diagnóstico, em média. Um terço dos participantes ainda apresentava sintomas neurológicos ou neuropsiquiátricos na época. Queixaram-se principalmente de dor de cabeça (40%), fadiga (40%), alterações de memória (30%), ansiedade (28%), perda de olfato (28%), depressão (20%), sonolência diurna (25%), perda de paladar (16%) e baixa libido (14%).

"Postamos um link para as pessoas interessadas em participar do teste se inscreverem, e ficamos surpresos ao receber mais de 200 voluntários em apenas alguns dias. Muitos eram polissintomáticos, com queixas amplamente variadas. Além do exame de neuroimagem, eles estão sendo avaliados neurologicamente e fazendo testes padronizados para medir o desempenho em funções cognitivas como memória, atenção e flexibilidade mental. No artigo apresentamos os resultados iniciais", disse Clarissa Yasuda, professora e membro do Instituto Brasileiro de Pesquisa em Neurociência e Neurotecnologia (BRAINN).

Apenas voluntários diagnosticados com COVID-19 pela RT-PCR e não hospitalizados foram incluídos no estudo. As avaliações foram realizadas após o término da fase aguda, e os resultados foram comparados com dados de 145 indivíduos saudáveis não infectados.

Os exames de ressonância magnética mostraram que alguns voluntários haviam diminuído a espessura cortical em algumas regiões cerebrais em comparação com a média de controles.

"Observamos atrofia em áreas associadas, por exemplo, à ansiedade, um dos sintomas mais frequentes no grupo de estudo", disse Yasuda. "Considerando que a prevalência de transtornos de ansiedade na população brasileira é de 9%, os 28% que encontramos é um número alarmantemente alto. Não esperávamos esses resultados em pacientes que tinham a forma leve da doença."

Em testes neuropsicológicos destinados a avaliar o funcionamento cognitivo, os voluntários também tiveram um desempenho inferior em algumas tarefas em comparação com a média nacional. Os resultados foram ajustados para idade, sexo e escolaridade, bem como o grau de fadiga relatado por cada participante.

"A pergunta que nos resta é: esses sintomas são temporários ou permanentes? Até agora, descobrimos que alguns assuntos melhoram, mas infelizmente muitos continuam a sofrer alterações", disse Yasuda.

"O que é surpreendente é que muitas pessoas foram reinfectadas por novas variantes, e algumas relatam sintomas piores do que tinham desde a primeira infecção. Em vista do novo vírus, vemos o acompanhamento longitudinal como crucial para entender a evolução das alterações neuropsiquiátricas ao longo do tempo e para que esse entendimento sirva de base para o desenvolvimento de terapias-alvo."


Metabolismo energético afetado

No Laboratório de Neuroproteômica do IB-UNICAMP, liderado por Martins-de-Souza, foram realizados experimentos em células de tecido cerebral de pessoas que morreram de COVID-19 e astrócitos cultivados in vitro para descobrir como a infecção pelo SARS-CoV-2 afeta as células do sistema nervoso do ponto de vista bioquímico.

As amostras da autópsia foram obtidas por meio de colaboração com o grupo liderado por Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). O proteome (todas as proteínas presentes no tecido) foi mapeado utilizando espectrometria de massa, técnica empregada para identificar diferentes substâncias em amostras biológicas de acordo com sua massa molecular.

"Quando os resultados foram comparados com os de indivíduos não infectados, várias proteínas com expressão alterada foram encontradas abundantes em astrócitos, o que validou os achados obtidos pela imunohistoquímica", disse Martins-de-Souza.

"Observamos alterações em várias vias bioquímicas nos astrócitos, especialmente vias associadas ao metabolismo energético."

O passo seguinte foi repetir a análise proteômica em astrócitos cultivados infectados em laboratório. Os astrócitos foram obtidos a partir de células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs). O método consiste em reprogramar células adultas (derivadas da pele ou outros tecidos de fácil acesso) para assumir um estágio de pluripotência semelhante ao das células-tronco de embriões.

Esta primeira parte foi realizada no laboratório IDOR de Stevens Rehen, professor da UFRJ. A equipe de Martins-de-Souza então usou estímulos químicos para fazer com que os iPSCs se diferenciassem em células-tronco neurais e, eventualmente, em astrócitos.

"Os resultados foram semelhantes aos da análise de amostras de tecido obtidas pela autópsia, pois apresentaram disfunção do metabolismo energético", disse Martins-de-Souza.

"Realizamos então uma análise metabolômica [com foco nos metabólitos produzidos pelos astrócitos cultivados], que evidenciaram alterações no metabolismo da glicose. Por alguma razão, os astrócitos infectados consomem mais glicose do que o normal, e ainda assim os níveis celulares de piruvato e lactato, os principais substratos de energia, diminuíram significativamente."

O lactato é um dos produtos do metabolismo da glicose, e os astrócitos exportam esse metabólito para neurônios, que o usam como fonte de energia. A análise in vitro dos pesquisadores mostrou que os níveis de lactato no meio da cultura celular eram normais, mas diminuíram dentro das células. "Os astrócitos parecem se esforçar para manter o fornecimento de energia aos neurônios, mesmo que esse esforço enfraqueca seu próprio funcionamento", disse Martins-de-Souza.

Como resultado desse processo, o funcionamento das mitocôndrias dos astrócitos (organelas produtoras de energia) foi de fato alterado, potencialmente influenciando os níveis cerebrais de neurotransmissores como o glutamato, que excita os neurônios e está associado à memória e aprendizagem, ou ácido gama-aminobutírico (GABA), que inibe o disparo excessivo de neurônios e pode promover sentimentos de calma e relaxamento.

"Em outro experimento, tentamos cultivar neurônios no meio onde os astrócitos infectados haviam crescido anteriormente e medido uma taxa de mortalidade celular acima do esperado. Em outras palavras, esse meio de cultura 'condicionado por astrócitos infectados' enfraqueceu a viabilidade dos neurônios", disse Martins-de-Souza.

Os achados descritos no artigo confirmam os de vários estudos publicados anteriormente apontando possíveis manifestações neurológicas e neuropsiquiátricas do COVID-19.

Resultados de experimentos em hamsters realizados no Instituto de Biociências (IB-USP), por exemplo, reforçam a hipótese de que a infecção pelo SARS-CoV-2 acelera o metabolismo de astrócitos e aumenta o consumo de moléculas usadas para gerar energia, como a glicose e a glutamina aminoácido.

Os resultados obtidos pelo grupo liderado por Jean Pierre Peron indicam que essa alteração metabólica prejudica a síntese de um neurotransmissor que desempenha um papel fundamental na comunicação entre os neurônios. Segundo Martins-de-Souza, não há consenso na literatura científica sobre como o SARS-CoV-2 chega ao cérebro.

"Alguns experimentos com animais sugerem que o vírus pode atravessar a barreira hemencefálica. Há também uma suspeita de que infecta o nervo olfativo e de lá invade o sistema nervoso central. Mas essas são hipóteses por enquanto", disse ele.

Uma das descobertas reveladas pelo artigo da PNAS é que o vírus não usa a proteína ACE-2 para invadir células do sistema nervoso central, como faz nos pulmões.

"Os astrócitos não têm a proteína em suas membranas. Pesquisa do Flávio Veras [FMRP-USP] e seu grupo mostram que o SARS-CoV-2 se liga à neuropilina proteica neste caso, ilustrando sua versatilidade em infectar diferentes tecidos", disse Martins-de-Souza.

No Laboratório de Neuroproteômica da UNICAMP, Martins-de-Souza analisou células nervosas e outras afetadas pelo COVID-19, como adipócitos, células do sistema imunológico e células gastrointestinais, para ver como a infecção alterou o proteome.

"Agora estamos compilando os dados para buscar peculiaridades e diferenças nas alterações causadas pelo vírus nesses diferentes tecidos. Milhares de proteínas e centenas de vias bioquímicas podem ser alteradas, com variações em cada caso. Esse conhecimento ajudará a orientar a busca de terapias específicas para cada sistema prejudicado pelo COVID-19", disse.

"Também estamos comparando as diferenças proteômicas observadas no tecido cerebral de pacientes que morreram de COVID-19 com diferenças proteômicas que encontramos ao longo dos anos em pacientes com esquizofrenia. Os sintomas de ambas as condições são bastante semelhantes. A psicose, o sinal mais clássico da esquizofrenia, também ocorre em pessoas com COVID-19."

O objetivo do estudo é descobrir se a infecção pelo SARS-CoV-2 pode levar à degeneração da matéria branca no cérebro, composta principalmente por células gliais (astrócitos e microglia) e axônios (extensões de neurônios).

"Observamos uma correspondência significativa [no padrão de alterações proteômicas] associadas ao metabolismo energético e proteínas gliais que parecem importantes tanto no COVID-19 quanto na esquizofrenia. Esses achados talvez possam fornecer um atalho para os tratamentos para os sintomas psiquiátricos do COVID-19", ponderou Martins-de-Souza.

Marcelo Mori, professor do IB-UNICAMP e membro do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), o estudo só foi possível graças à colaboração de pesquisadores com diferentes e complementares origens e expertise.

"Isso demonstra que a ciência competitiva de primeira classe é sempre interdisciplinar", disse ele. "É difícil competir internacionalmente se você ficar dentro do seu próprio laboratório, confinando-se às técnicas com as quais você está familiarizado e ao equipamento ao qual você tem acesso."

Author: Press Office

FAPESP

“Morphological, cellular, and molecular basis of brain infection in COVID-19 patients” by Fernanda Crunfli et al. PNAS

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